Responsável por pedir na Justiça o acesso ao exame de Bolsonaro, o advogado Afranio Affonso Ferreira Neto fala sobre a ação e imprensa: ‘os pesos e contrapesos democráticos têm sido testados e estão funcionando bem’
Xandu Alves@xandualves10
Se a informação é um bem público, ela deve estar acessível à sociedade. Essa é a essência da Lei nº 12.527, conhecida como LAI (Lei de Acesso à Informação). Na prática, obriga órgãos e entidades ligados ao poder público a realizar uma gestão transparente da informação, permitindo amplo acesso e divulgação de dados públicos e garantindo sua permanente disponibilidade e integridade. Faz parte do exercício da democracia.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que em março fez um teste para coronavírus, vem se recusando a revelar os resultados. Nesta última semana, Afranio Affonso Ferreira Neto, advogado do jornal ‘O Estado de S. Paulo’, responsável por pedir na Justiça o acesso aos laudos, teve o pedido aceito e o resultado deveria ser divulgado em 48h. Nesta sexta, Ferreira Neto falou ao OVALE sobre a ação.
Como foi a ação para obter o resultado do exame de Bolsonaro?
Advogamos para o Estadão há muitos anos. Quando vimos a recusa presidencial quanto à apresentação dos resultados, apresentação esta que vários outros chefes de estado desde o início fizeram, houve uma estupefação de todos os advogados do escritório. A surpresa encontrou eco no jornalismo do Estadão. Muito estranho um chefe de Estado alegar direito à intimidade quanto a um tema de evidente e relevante interesse público. Especialmente se o mesmo chefe de Estado, contraditoriamente ao alegado direito à intimidade, pública e espontaneamente afirma que o resultado de seus exames deu negativo. Não havia realmente motivo justificável para a recusa. Resultados de exames do presidente da República evidentemente interessam à nação.
O direito à intimidade pode e deve sofrer restrições. Não pode ser pleno quando se trata de pessoa pública de tal notoriedade. Não estamos falando de um particular. Trata-se da autoridade máxima do Executivo Nacional, que ademais já havia escancarado sua intimidade, espontaneamente, ao informar que não tinha sofrido da doença pandêmica.
O presidente recorreu?
A União juntou aos autos uma declaração médica que em nada se assemelha aos resultados dos exames, cuja apresentação foi especificamente determinada pelo Poder Judiciário. A juíza então determinou (novamente) a apresentação do resultado dos exames. E ela deu mais 48h de prazo à União.
O senhor avalia como vitória da democracia e do livre acesso às informações o resultado desta ação?
Esse caso é emblemático. Não estamos tratando de interesse privado. Não estamos lidando com fofocas. Aí sim incidiriam inteiramente as regras constitucionais de preservação da intimidade. E com toda a razão. O Estado Democrático de Direito pressupõe o livre acesso às informações de interesse público, e não interesse “do público”.
Além da Constituição Federal, há outras tantas normas legais que garantem tal liberdade. Como a Lei de Acesso à Informação, que dá os meios para a sociedade requisitar dados governamentais.
Quanto esses valores são indispensáveis numa sociedade?
Não existe democracia sem liberdade de informação. Não há como o mandante de uma nação (o povo, nos termos do artigo 1º da Constituição Federal) exercer conscientemente seu direito a voto, por exemplo, sem ser plenamente informado de fatos e opiniões, sem que sobre estes incidam quaisquer restrições.
Vê risco à democracia?
Não vejo. Ao contrário. Vejo as instituições brasileiras funcionando com pujança. E um belíssimo exemplo disso foi a negação de validade às restrições quanto à Lei de Acesso à Informação. Decisão unânime do Supremo, da qual devemos nos orgulhar.
Bolsonaro diz que o resultado do exame só interessa a ele. O que diz sobre essa alegação?
O resultado do exame foi divulgado espontaneamente pelo presidente. Com isso ele próprio reconheceu a importância pública da informação. Se achava que era segredo, por que divulgou?
Não consigo entender a relutância em apresentar a prova da informação que já foi dada. Com todo o respeito às opiniões diversas.
O senhor acha que a nossa democracia é plena?
Sim. Sou um otimista incorrigível. É plena sim. Os entes estatais funcionam. Os pesos e contrapesos democráticos têm sido constantemente testados e estão funcionando bastante bem. Falta apenas mais tempo de exercício.
Chamada de ‘inimiga’ por poderosos, imprensa cumpre seu papel democrático
Diretor-presidente de OVALE, Fernando Salerno disse que o jornal defende a liberdade de expressão e de informação contra todas as tentativas autoritárias. “Nada, nem ninguém, pode obstaculizar a sentença voltairiana, cujo legado preconiza a mais ampla liberdade de expressão e informação, condição inarredável à democracia moderna”. Para o advogado Afranio Affonso Ferreira Neto, a imprensa tem sido tratada como inimiga no Brasil, chamada de “eles” por governos. “Nisso coincidem até os governos com visões de mundo notadamente antagônicas, como os de Lula e Bolsonaro, salvo honrosas exceções que compõem e compuseram tais governos. Parece-me sintomático”, disse a OVALE.
FONTE: O VALE